Yuval Noah Harari em quadrinhos quer levar o conhecimento tecnológico a um público maior para não deixar espaço para as “teorias bíblicas da conspiração”

VÍDEO | Introdução da HQ ‘Sapiens’, de Yuval Noah Harari, com locução em inglês e legendas em espanhol.

Por Juan Carlos Sanz

O pensador mais popular do mundo adaptou seu sucesso ‘Sapiens’ – que já vendeu 16 milhões de exemplares– para o formato de quadrinhos como parte de sua campanha pela divulgação científica e contra as teorias — bíblicas e cristãs — da conspiração

Desde o início da pandemia Yuval Noah Harari (Haifa, 1976), provavelmente o pensador mais popular da atualidade, parece ter deixado de interpretar o mundo para analisar como se transforma. Sua posição a favor de um sistema de saúde robusto e da cooperação internacional face à crise económica derivada da covid-19 imprime um claro caráter político às previsões que faz para um amanhã iminente. Continua sem quer usar um smartphone. “Sinto-me mais protegido assim”, admite.

Vestido de preto, com uma única concessão à frivolidade —meias claras com bordados—, a conversa com Harari flui com brilhantismo em seu escritório em Tel Aviv, uma cobertura com vista para o mar que sobrevoa os telhados de uma cidade ainda semiconfinada. A entrevista que concedeu esta semana ao EL PAÍS se deve à publicação em espanhol do primeiro dos quatro volumes de Sapiens, uma história gráfica, que traduz para a linguagem da história em quadrinhos a obra germinal do historiador israelense, traduzida para 60 línguas e que já vendeu mais de 16 milhões de exemplares.

Pergunta. Um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, doutorado em Oxford, em formato de quadrinhos?

Resposta. Esse tipo de apresentação é mais acessível e divertido. Em tempos de pandemia é extremamente importante fazer um esforço para levar o conhecimento tecnológico a um público amplo para não deixar espaço para as teorias da conspiração. A ciência, a realidade, é muito difícil de explicar e, enquanto isso, circula o boato de que Bill Gates criou o vírus em um laboratório para controlar o mundo. É vital que os cientistas encontrem maneiras mais interessantes de se comunicar para chegar às pessoas.

P. Você costuma usar um enfoque com grande-angular ou de visão panorâmica em seu trabalho. Para mostrar aos outros o que têm diante deles?

R. O método começa por fazer as perguntas fundamentais. Por exemplo: por que os homens dominaram as mulheres na maioria das sociedades? Não se pode responder, digamos, olhando apenas a história espanhola do século XVI. Talvez o que encontrarmos seja específico para aquela época e lugar. É preciso reunir informações de antropólogos de diferentes sociedades, de arqueólogos de diferentes períodos, pesquisar em biologia. Somente juntando todas as peças se pode começar a responder uma pergunta-chave.

P. Às vezes o senhor é criticado por recorrer ao relativismo para questionar certezas científicas. Inclusive propôs uma mudança de paradigma político em um mundo hipertecnológico.

Vinheta da história em quadrinhos ‘Sapiens’, que acaba de ser publicada na Espanha.
Vinheta da história em quadrinhos ‘Sapiens’, que acaba de ser publicada na Espanha.

R. Se você me perguntar qual será o novo modelo, não sei. Mas é urgente desenvolvê-lo. As mudanças tecnológicas estão tornando obsoleto o antigo sistema. Talvez o principal desafio que enfrentamos seja o que está tornando possível piratear seres humanos, coletar tantos dados das pessoas que um sistema externo possa nos conhecer melhor do que nós mesmos e tente nos manipular. As atuais estruturas políticas e econômicas foram construídas quando essa tecnologia não existia. Agora é preciso reinventar a democracia e o sistema econômico. O que continua existindo é uma base universal absoluta sobre a ética e a moralidade que não muda. Acredito que a moralidade não é acatar as leis, mas reduzir o sofrimento, que é um fenômeno biológico universal. Os meios de comunicação mudam, porque as condições mudam. No século XX, a democracia liberal era o melhor sistema político, o mais eficaz para reduzir uma parte do sofrimento humano, em comparação com o totalitarismo ou as monarquias absolutas. Não sei o que acontecerá daqui a 100 anos, mas será necessário um novo tipo de sistema político, que espero que seja melhor para libertar as pessoas do sofrimento.

P. Devemos começar fortalecendo a cooperação global, como o senhor preconiza, para fazer frente à pandemia? O senhor também fala de falta de liderança internacional, lastreada pelo nacionalismo populista de líderes como Donald Trump (EUA), Jair Bolsonaro (Brasil) e Viktor Orbán (Hungria).

Yuval Noah Harari, en Los Ángeles en 2018.
Yuval Noah Harari, en Los Ángeles en 2018.©EMILY BERL / THE NEW YORK TIMES / CONTACTO.

R. Eles costumam vir a Israel [ironiza]. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu é amigo de todos eles. Nesta pandemia vimos que é melhor cooperar com outros países para desenvolver uma vacina ou impedir a propagação do vírus. Trump, Bolsonaro e outros desinformam quando consideram antipatriótica a coordenação global. Ser patriota é apoiar um bom sistema de saúde, é pagar impostos. Se um presidente que é bilionário paga apenas 750 dólares (cerca de 4.214 reais) em impostos por ano (refere-se à declaração de impostos de Trump divulgada pelo The New York Times), não é um patriota. [Harari e seu marido e agente, Itzik Yahav, doaram um milhão de dólares para a Organização Mundial da Saúde em abril, depois que Trump suspendeu o financiamento dos EUA ao órgão da ONU].

P. Para muitos seu discurso soará como intervencionismo keynesiano.

R. Não. Trata-se já de um acervo comum, de uma ideia compartilhada desde a segunda metade do século XX. Todos nós precisamos de um bom sistema de saúde e é preciso pagar por isso. Espero que a covid-19 extinga de uma vez por todas o modelo de pensamento que aposta na privatização. Ninguém pode pensar seriamente em deixar a gestão da saúde pública nas mãos do livre mercado.

P. O tempo das religiões já passou? O desenvolvimento tecnológico torna desnecessária sua narrativa?

R. Não acredito que tenham necessariamente que desaparecer, embora devam se adaptar às novas circunstâncias. Para impulsionar uma ampla cooperação global também é necessário um pouco de mitologia para unir as pessoas, mas podemos escolher narrativas melhores. As sociedades mais prósperas são as menos religiosas. Comparemos a Espanha ou a Holanda com a Síria ou o Iraque, quais são mais violentos e menos tolerantes?

P. A religião deveria ser substituída pela meditação e pelos retiros na Índia que o senhor pratica?

R. Existe uma grande diferença entre espiritualidade e religião. A primeira se refere às questões fundamentais: quem sou eu? qual o sentido da vida? Buscar as respostas é uma prática espiritual. A religião é o oposto: oferece respostas rudimentares e pede que acreditemos nelas.

P. Durante a pandemia, muitos líderes religiosos pediram aos fiéis que não fossem aos templos, por razões científicas.

R. Não deve haver contradição entre religião e ciência. Existem choques, mas não são inevitáveis. O Papa pediu aos cristãos que não fossem às igrejas para não serem infectados e que acompanhassem a missa online. A atitude de Francisco é positiva, como na mudança climática. Isso também aconteceu em mesquitas e sinagogas.

P. Mas os ultraortodoxos lotaram os templos judaicos em Israel.

R. Não funciona igual que com o papa Francisco (risos). Embora seja uma questão mais política do que religiosa. Netanyahu mantém deliberadamente uma estratégia de dividir para governar. Cria tensão entre diferentes setores da sociedade israelense. Incita o ódio para fortalecer sua base política —faz crer que outros cidadãos são traidores e inimigos— para que não vote em outros partidos. Em tempos normais se pode governar com uma parte da sociedade. Em uma pandemia é preciso a colaboração de todos. Embora o ódio tenha se propagado durante anos, não é surpreendente que esta crise de confiança aconteça em Israel.

P. Durante muito tempo o senhor se concentrou em assuntos globais, mas desde o início da pandemia fez ouvir sua voz na política interna israelense. Em um artigo publicado na imprensa, denunciou uma tentativa de golpe de Netanyahu.

R. Normalmente prefiro ficar à margem da política do dia a dia, mas tratava-se de uma situação excepcional. No início da pandemia, com todo mundo em pânico, Netanyahu não conseguia formar Governo porque não tinha maioria. Então fechou os tribunais com a desculpa de proteger os juízes e tentou impedir o funcionamento do Parlamento. Havia a sensação de que estava tentando promover um golpe. Felizmente, a pressão dos partidos e da opinião pública restaurou o equilíbrio de poderes.

P. O senhor não gosta de ser chamado de profeta ou guru, mas como analista da realidade faz previsões.

R. Como sairemos da pandemia? A humanidade sairá mais unida? Não sei. A única coisa que posso dizer é que tudo depende das decisões que forem tomadas. Espero que a população reaja com mais cooperação. Mas também podem ser tomadas decisões equivocadas. Em meus livros tento detectar diferentes cenários para o futuro e encorajar as pessoas a fazerem a escolha certa. Mas não posso saber o que vai acontecer.

P. A pandemia será um marco na história?

R. Em si mesma, a covid-19 é relativamente leve. Causa pouca mortandade. A Peste Negra medieval foi infinitamente pior, matou entre um quarto e metade da população da Europa e da Ásia. A pandemia de gripe de 1918 a 1919 foi mais grave, em alguns países matou 5% da população.

P. Aquela conhecida como gripe espanhola?

R. Prefiro não usar essa expressão. Como país neutro, a Espanha tinha uma imprensa mais livre em meio à censura da Primeira Guerra Mundial e por isso sempre era citada como fonte. No final, acabou se dizendo que a gripe vinha da Espanha. O maior perigo da covid-19 agora é econômico e político, não médico. As repercussões da pandemia podem ser catastróficas e durar muitos anos, com o colapso de regiões inteiras, como a América do Sul, e o surgimento de novas tecnologias de vigilância. Países que são muito cuidadosos na proteção dos direitos de seus cidadãos estão legitimando seu uso. Talvez daqui a 50 anos, quando se olhar para trás, será lembrada não pelo vírus, mas pelo momento em que todos passaram a ser vigiados pelo Governo. Esse pode ser o seu grande legado. Principalmente se houver vigilância biométrica, não só para saber para onde uma pessoa vai e com quem está, mas também para observar o que acontece dentro de seu corpo: a pressão arterial, a frequência cardíaca, a atividade cerebral. Os Governos e as empresas serão capazes de nos conhecer melhor do que nós mesmos; entender nossas emoções e pensamentos, nossa personalidade. É uma forma de controle social com a qual os regimes totalitários sempre fantasiaram.

“Não gostava de ser personagem principal da HQ”

O processo de criação de Sapiens, uma História Gráfica juntamente com David Vandermeulen (coautor do desenho) e Daniel Casanave (ilustrador) continua fascinando Harari. “Foi o projeto mais divertido em que trabalhei em toda a minha carreira. Rompemos convenções acadêmicas e experimentamos com a linguagem da narrativa policial, com a imagem de um super-herói ou com os filmes de ação e os reality shows da televisão para abrir novas vias de transmissão do conhecimento científico ao público”, conta durante a entrevista ao EL PAÍS em Tel Aviv.

“A ideia inicial foi deles (de Vandermeulen e Casanave) e surgiu através da Albin Michel, a editora francesa do meu trabalho. É uma maneira brilhante de tornar a narrativa mais acessível, sem deixar de ser científica, e de uma forma mais atraente e simpática. Existem poucas ocasiões de recorrer ao humor do que em um livro normal sobre ciência.”

– O senhor colocou um veto ou limite?

– Houve muito debate sobre o uso da minha imagem nos desenhos, como personagem principal da história. Eles queriam que eu aparecesse como uma espécie de guia no livro. No começo não gostei. Queriam que eu fosse a estrela principal, mas chegamos a um acordo: que haveria também todo um elenco de cientistas, alguns reais e outros imaginários. É algo importante. Corresponde à ideia de que a ciência não é trabalho de uma única pessoa. E quando vários personagens intervêm se oferece uma ideia muito mais precisa de como a ciência realmente é.

“As principais questões políticas também são científicas”, diz Harari, referindo-se à mudança climática ou à pandemia. “Se não se tem uma boa base científica, se dizem coisas sem sentido. É preciso construir uma ponte entre a comunidade científica e o público em geral. Caso contrário, as ideias errôneas se implantarão na mente das pessoas”.

Fonte: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-10-24/yuval-noah-harari-ser-patriota-e-manter-um-bom-sistema-de-saude-pagar-impostos.html

 

 

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