TALES FONSECA: "Perdi Meu Avô Pela Terceira Vez!"

Na madrugada deste 06/07/2006, faleceu João Lauer, meu avô materno. É a terceira vez que perco o pai de minha mãe!

A primeira vez foi em 1936. Não me recordo bem do acontecido, pois eu só nasceria 21 anos depois. Mas desde criança ouço minha mãe contando a história:

Alberto Buss Filho foi um dos primeiros adventistas em sua região. Naquele sábado, dia 28/11/1936, ele estava feliz, pois a colheita havia sido boa, e decidiu ir mais cedo para a igreja, entregar o dízimo e preparar a lição, pois era professor de classe. Ele e minha avó Ana, descendentes de imigrantes alemães, moravam no interior do Espírito Santo. Tinham duas filhas, ele ia a cavalo na dianteira com a menina de dois anos no braço esquerdo, e minha avó vinha atrás com a outra, de poucos meses. Perto da igreja havia um entroncamento com duas porteiras próximas, onde era necessário o cavaleiro parar, abrir uma e depois a outra. Um lugar perfeito para uma emboscada. Foi o que pensaram os pistoleiros. Quando meu avô Alberto havia acabado de passar a primeira porteira, começaram os disparos.

Não era ele quem deveria morrer. Era um irmão seu que estava sendo caçado, e era o que sempre passava por ali de manhã cedo. Infelizmente, naquele dia meu avô se adiantou. Eram vários pistoleiros. Cercaram o casal com as crianças, deram muitos tiros. Um pegou no rosto, e levou mais cinco tiros nas costas e no braço que guiava o cavalo. Ele falou para minha avó, “abre depressa”, ela pulou do cavalo, com minha tia Hilda nos braços, correu e abriu a porteira seguinte. Os pistoleiros estavam a pé, e meu avô ainda esporeou o cavalo, que disparou correndo, mas por razões desconhecidas não tomou o caminho da igreja, e sim outro que não era seu costume. Quem anda a cavalo sabe que eles tendem a seguir sempre o mesmo caminho. Atiraram na minha avó também, mas só acertaram o queixo do seu cavalo. Eram muitos homens, foi um longo tiroteio contra um casal desarmado, com crianças no colo e indo para a igreja. Depois de um quilômetro e meio, Alberto não agüentou mais. Vendo que ia cair, forçou a queda sobre o braço atirado, caindo com a menininha de dois anos sobre si. Ela não sofreu nenhum ferimento. Após algum tempo, Ana chegou correndo, com a outra menina no colo.

E os pistoleiros?

Ficaram lá, esperando. Queriam terminar o serviço. Logo em seguida veio Luís, outro irmão de meu avô, que também ia para a igreja com seu pai, meu bisavô Alberto. Também não era ele que estava marcado para morrer. Luís recebeu vários tiros e morreu na hora. Os pistoleiros haviam melhorado a pontaria. Meu bisavô correu e se escondeu no meio do mato, sobreviveu. Já o irmão que devia morrer, não passou por ali. Sobreviveu e continuou aprontando pela vida afora. Estranho, não? Mas ainda não é hora de tirar conclusões sobre os desígnios de Deus.

Na estrada que ia para a igreja havia outra emboscada, com outros pistoleiros. Como o cavalo escolheu um caminho diferente, as mulheres sobreviveram. O costume na época era matar e depois pisotear o moribundo. As mulheres eram vítimas de outro tipo de humilhação. Era uma guerra de extermínio, terra sem lei.

Alberto caiu no meio de um milharal. A menina que estava em seus braços era minha mãe, Selma. Ele sentia muita dor no tórax e sede, devido ao sangramento interno. Mas não gemia. Quando Ana chegou, falou que havia reconhecido um dos pistoleiros. Ele disse que isso não importava, absolutamente. Sabia que ia morrer. Deitado, com as duas filhas e a esposa ao lado, falou sobre o futuro. Pediu a Ana que não saísse da terra, que ainda não estava regularizada, era pouca, mas a única fonte de subsistência. A vida no interior ainda hoje é difícil, naquela época era muito mais. Uma mulher sozinha com duas meninas não teria muita chance. Ele pediu que ela se casasse de novo, com um rapaz que fosse cristão, para ajudar a cuidar de suas filhinhas. Mas tinha um pedido. Seu grande sonho era que elas pudessem estudar. Naquela região a maioria era de analfabetos (até hoje!) havia poucas escolas, por isso ele queria que as duas não só estudassem mas que fossem professoras. Então, que ela escolhesse um futuro marido que concordasse com isso. Minha avó prometeu que sim.

Algum tempo depois, chegaram vários outros membros da igreja. Chegavam e ficavam, tristes, ouvindo meu avô falar. Aquelas pessoas contam que em nenhum momento ele praguejou ou reclamou. Ele falava da certeza que tinha em rever sua esposa e filhas no céu. E insistia que queria que elas estudassem. E assim, naquela manhã de sábado, meu avô entregou seu espírito para Deus, e seu corpo voltou ao pó do qual somos formados.

Só tenho uma foto dele, em preto e branco, ao lado de minha avó. Mas eles ainda não eram avós! Ele era um rapaz alto, um alemão forte, olhar decidido. Ao seu lado, uma moça bonita. A foto deve ter sido tirada anos antes. De vez em quando olho para a foto, tentando conhecê-lo. Fico imaginando como seria sua voz. Como ele teria brincado comigo quando criança. Como ele será no céu. Eu o reconhecerei (se eu for, é claro), já ele terá que ficar perguntando para minha avó quem é quem naquele povaréu todo.

Três anos e meio depois, Ana se casou novamente, com meu avô João Lauer Filho. Não sem antes fazê-lo se comprometer que as duas meninas iriam estudar.

Meninos, naquela época e lugar as fotos eram difíceis porque era aquele aparelho enorme, sobre um tripé, e o fotógrafo escondia a cabeça sob um pano preto, apontava, o flash plufff! queimava e soltava uma fumacinha. Não havia celular que tira fotos. Nem havia celular. Nem telefone. Não havia luz nem energia elétrica. Nem carros nem asfalto. Nada de geladeira. Nem televisão...

João Lauer e Ana tiveram mais oito filhos. E ainda adotaram outros. Ele era muito trabalhador, assim como minha avó Ana é até hoje, com seus 93 anos. Minha avó nasceu em 19 /11/1913 (só para ter uma idéia, o Titanic afundou em Abril de 1912, e Ellen White faleceu em Julho de 1915. Assim, usando o raciocínio dos teólogos, ela não poderia ter participado do naufrágio do Titanic, mas poderia ter ouvido Ellen White explicar o que afinal ela entendia por “espírito de Cristo”).

Meu avô também era um “homem de palavra”, respeitado por todos que o conheciam. Mesmo assim, seus vizinhos o questionaram quando ele resolveu mandar as duas primeiras filhas para a escola, com grande sacrifício financeiro. “Elas nem suas filhas são”, diziam. Ele não admitia que ninguém dissesse isso. Eram suas filhas, e para elas, ele era o pai, isto jamais foi questionado. Não era considerado “inteligente”, naquela época, mandar os filhos para a escola. O certo era ficar trabalhando para ganhar dinheiro. Mas meu avô João estava convicto que o que fazia era o correto.

Minha mãe, Selma, foi a primeira a ir para o colégio, um internato adventista em Petrópolis – RJ. Lá ela conheceu meu pai. Anos depois, se casaram, e meu pai voltou para ser preceptor e depois diretor daquela escola (IPAE). Como ele também acreditava que a educação é o que existe de maior valor para ser dado aos filhos, facilitou a ida de todos os demais filhos de Ana e João Lauer para o colégio.

Muitas pessoas vão para os colégios. Mas nem todas vencem. É muito importante o que aprendem em casa, primeiro.

Na primeira vez que visitei meu avô, foi o tio Samuel que me mostrou como era o sistema pedagógico na sua casa. Primeiro, a Bíblia sobre a mesa. Depois, o chicote atrás da porta.

Eu fiquei com medo. Minha mãe algumas vezes já me dera umas chineladas na poupança por alguma arte, mas o chicote me parecia algo terrível. Mas meu avô – ah, avô é avô! Jamais sequer falou alto comigo. Ele gostava muito de mim, eu era seu primeiro neto homem. Se havia alguma briga ou gritaria entre meus tios, todos meninos ainda, ele me protegia, assim como a minha irmã, Selzi. De todos os períodos que passei com meus avós, só tenho boas recordações. Ele e meus tios e tias ficavam o dia inteiro na roça, trabalhando. À noite, jantavam, estudavam a Bíblia, iam dormir cansados. Tempo para brincar só no sábado à tarde e domingo de manhã. Naquela época também não havia psicólogos e pedagogos “esquerdistas” para questionar isso de trabalho infantil. As coisas eram muito simples: se não trabalhar muito, não tem o que comer.

As duas primeiras filhas se formaram em pedagogia e orientação educacional, foram professoras, cumprindo plenamente o desejo do falecido pai. Mas não ficou só nisso. Todos os demais filhos de João e Ana Lauer se formaram. E também formaram famílias sólidas. Contando com os maridos e esposas dos filhos e netos, são 19 professores, inclusive professores universitários, 9 médicos, 4 pastores, além de dentistas, enfermeiros, fisioterapeutas, prefeitos, polícia federal, etc. O que eu estou querendo destacar é que todos “viraram gente”. Todos se casaram bem, criaram seus filhos também dentro da disciplina cristã (ó o chicote atrás da porta!), são pessoas benquistas em todos os lugares que trabalharam.

Na última reunião de família, (EDESSA, Colatina – ES, em 2000) o tio Antônio (pastor Antônio Moisés de Almeida) então presidente de uma Associação, observou que aquele casal dera à igreja mais obreiros do que todos os obreiros que ele tinha em seu campo. A grande maioria ainda trabalha como obreiros. Mais importante que isso, é que foram bem sucedidos profissionalmente, financeiramente, e formaram famílias bem estruturadas. Olhando retrospectivamente, dá para ver que Deus abençoou muito o lar e a descendência de João e Ana Lauer. Tivesse ele seguido o conselho de seus vizinhos mais espertos, estariam todos lá no interior de Afonso Cláudio plantando inhame até hoje.

A segunda vez que perdi meu avô foi logo após esta reunião, em 2000. Minha mãe observou que ele estava às vezes não reconhecendo pessoas. Em poucos meses, uma doença degenerativa foi “desligando” seu cérebro. As últimas pessoas que ele ainda conhecia eram minha avó, minha mãe e o Zeferino (prof. Zeferino, patrimônio histórico do EDESSA). Sua consciência foi lentamente se apagando. Certa ocasião, em frente à igreja, eu o cumprimentei. Ele olhou para mim com um olhar diferente, prolongado, e eu vi, lá no fundo de seus olhos extremamente azuis, que ele me reconhecera. Falou meu nome. Mas foi só um relance, e as aquelas conexões entre seus neurônios voltaram a se “desligar”.  E assim, lentamente, seu espírito foi abandonando seu corpo e nos abandonando.

Falar sobre corpo e espírito é sempre perigoso. As pessoas que são religiosas sabem exatamente o que é “espírito”, estão absolutamente convencidas que estão certas, e tem certeza que quem não crê exatamente como elas está errado. E a maioria das pessoas acha que quem está errado não presta. Por isso, não é bom negócio tocar nestes temas polêmicos. Mas a questão é que ninguém consegue explicar isto direito. Os ateus zombam dos que crêem, e os que crêem se matam uns aos outros porque há dezenas de crenças diferentes e incompatíveis entre si. O que sei é que meu avô Alberto tinha seu espírito saudável e forte, e via seu corpo o abandonar. Já meu avô João ainda tinha o corpo com bastante vitalidade, mas seu espírito o abandonou silenciosamente. Na ressurreição dos justos, meus dois avôs maternos estarão perfeitos, com sua inteligência e memória em plena capacidade. Para Deus isso é moleza, refazer um programa que ele mesmo criou.

A terceira vez que perdi meu avô foi quando seu corpo, enfim, descansou, nesta madrugada do dia 06. A família já estava de certa forma preparada.

Não estou disposto a defender nenhum ponto de vista sobre o que é “espírito”, relativo a esse assunto. Mas se alguém quiser polemizar, tudo bem, vou lá na casa de meu avô buscar a Bíblia e principalmente o chicote, já que ele não necessita mais desses dois instrumentos educacionais.

Em tempo. Nunca soube que ele tivesse usado o chicote. Talvez fosse só um símbolo, um conceito pendurado atrás da porta. Entretanto, a Bíblia foi usada diariamente, por todos os anos de sua vida.

Tales Fonseca

Leia também:

Retornar