Série: Descobrindo as Riquezas da Teologia da Criação no Gênesis
8. Demitização do Mundo e do Poder — A Anulação do Poder Transcendente

 

Por Edegard Silva Pereira

 

Este artigo trata de mostrar um dos grandes benefícios que a teologia da criação legou à humanidade: a demitização do mundo e do poder. O que distancia definitivamente essa teologia do mito é sua original visão de mundo — um mundo completamente demitizado, no qual o poder transcendente não tem legitimidade. Em sua formulação, o mito aparece como o principal obstáculo para que comece a humanidade do homem, porque ele promove a divinização do homem pelo homem. Ao mesmo tempo em que anuncia a eliminação de um mundo cheio de deuses e a derrocada do poder derivado da divindade, a teologia da criação chama o homem para algo novo.

Comecemos dando uma olhadela no mito social, a fim de que fiquem claras sua função na sociedade, sua visão de mundo e sua maneira de conceber o poder.

 

A função do mito

Segundo François Houtart, toda sociedade "é fruto de relações que se estabelecem entre grupos humanos a fim de assegurar sua subsistência imediata e histórica. Simultaneamente, tais grupos constroem um universo de representações —uma espécie de realidade em um segundo nível— que interpreta a realidade material, a relação do homem com a Natureza e as relações sociais, dando-lhes assim um sentido. E é esse sentido que fornece a base para os sistemas de práticas sociais que possibilitam a reprodução das relações, oferecendo assim um modelo ou quadro de comportamento para os indivíduos ou grupos".

A esse universo de representações simbólicas pertence o mito social, que no Antigo Oriente Médio era manejado pela religião e pela política a fim de reproduzirem as relações sociais estabelecidas. O Prof. Ernst Cassirer diz que o simbolismo mítico surge da busca do significado do ser, sob a pressão de profundos desejos individuais e violentos impulsos sociais. Em sua forma final, o mito é uma objetivação da experiência do homem, não de sua experiência individual, mas coletiva. Em seu livro O Mito do Estado, mostra como o pensamento mítico dominava a vida prática e social do homem antigo, e como domina ainda a vida política do homem moderno.  

 

A visão mítica de mundo

Em geral, o mito social distingue dois mundos e os hierarquiza: há o mundo superior —o divino—, mais forte, contraposto ao mundo inferior —o humano—, mais fraco. Essa tradição, que os antropólogos chamam “a doutrina de dois mundos”, comparece na base da história do ser humano, a tal ponto que toda a cultura humana é um caminhar dentro dessa dicotomia, a qual expressa a impotência do homem frente às forças da natureza que ele não pode dominar.

O mito de Prometeu nos leva ao cerne do problema gerado pela ambigüidade desses dois mundos. Ele é punido —acorrentado pelos deuses— porque aprendeu a lidar com o fogo. Tal punição significa que os deuses agem como se tivessem ciúmes do ser humano. Sempre que este consegue dominar algum elemento da natureza, sofre a vingança divina para impedi-lo de se tornar senhor deste mundo. Ou seja, a ingerência dos deuses é o principal estorvo que o homem do passado encontra para integrar-se no mundo. Essa ingerência seria como se o problema continuasse indefinidamente, como se a solução fosse o desaparecimento, a morte dos deuses. Na Grécia, onde o mito é a fonte da ética e o teatro é um culto religioso, a função da máquina teatral grega é fazer aparecer e desaparecer os deuses.

Segundo a visão mítica, o mundo divino domina completamente o mundo humano. Interfere em todas as ações do homem. Os deuses se manifestam no mundo humano com raios, tempestades, secas, enchentes, terremotos e vulcões, destruindo plantações, moradias e vidas. Controlam despoticamente a sociedade através de seus representantes, os reis. Numa certa medida, a rotina das pessoas consiste em conseguir que os deuses lhes façam favores, barganhando e inclusive trapaceando com eles.

A condição posta ao homem antigo para que ele pudesse ter um bom relacionamento com os deuses e atingir o nível superior da existência é a imitação da divindade. E é esta imitação o que mais dificulta esse homem de ser realmente humano e integrar-se no mundo. Por um lado, o desumaniza colocando o divino como meta. O que se traduz em pensamentos e ações contrárias ao homem em todas as áreas da vida. Por outro lado, o aliena e o isola de seu próprio mundo ao dar prioridade a sua adaptação ao mundo divino.

 

Mito e poder

O simbolismo mítico conduz também a uma objetivação de sentimentos sobre as relações de poder. Para o homem antigo a essência do mundo e a essência do poder eram divinas. Os deuses dos povos antigos eram personificações das forças “divinas” da natureza e do ser humano, sobretudo da força da coesão social. As conceituações politeístas da divindade que encontramos nos panteões da religião cananéia, egípcia e mesopotâmica (parte importante do ambiente no qual a teologia da criação do Gênesis foi formulada), eram, cada uma a seu modo, representações simbólicas das relações de poder.

Segundo essas concepções, o rei vivia uma relação íntima com a divindade, como seu lugar-tenente. Os deuses são os "proprietários" do mundo e do cosmo, e o rei os representa. Conseqüentemente, o rei é o senhor absoluto de sua terra e sua palavra é definitiva. E assim, o poder despótico da monarquia era atribuído também aos deuses, isto é, era considerado como sendo divino e inexorável.

Isto significa que o mito social diviniza o poder, a estrutura social, o Estado e os governantes; e que, através do mito, o corpo social vê nos deuses nacionais a deificação de si mesmo em sua unidade de entidade social.

 

Gênesis e mito

Foram as civilizações mesopotâmicas paralelas de Suméria e Acade as que forneceram a todos os povos circunvizinhos do Israel bíblico os modelos de mitos sociais. Os mais difundidos e influentes foram o Enuma elish, um poema sobre a criação do mundo, e a lenda de Gilgamés, uma epopéia sobre a busca frustrada da imortalidade, mediante o comer a fruta que faz o homem como um deus, por um herói. Os primeiros capítulos do Gênesis estão relacionados com esses mitos.

Que significa essa relação do Gênesis com o mito social?

O mito figurava entre os gêneros literários preferidos pelos povos vizinhos de Israel para exprimirem sua mais elevada forma de pensamento sobre o homem, mediante um retorno às origens. E revela como esses povos objetivavam sua experiência ao enfrentar questões fundamentais da existência, como a relação com a divindade e as forças do cosmo, o sentido da vida, as incertezas do destino, as causas da felicidade e da infelicidade, as relações políticas e sociais.

O uso de expressões e elementos imaginativos tomados do mito pela teologia da criação serve para expressar idéias radicalmente diferentes do que essas mesmas imagens significavam nos mitos; ou, dito de outro modo, serve para tornar evidente que a fé de Israel em seu Deus está em conflito com as idéias contidas nos mitos. Com o uso de tais expressões e elementos imaginativos, a intenção do Gênesis —afirma G. von Rad— é realizar uma enérgica purificação do pensamento mítico e obter um grau máximo de concentração no puramente teológico. Desse modo, a teologia da criação não fala a linguagem do mito. Suas imagens são espirituais, e não míticas.

 

Demitização do mundo

A teologia da criação não se refere a um mundo divino. Tampouco fala em astros divinos, animais divinos, governantes divinos ou de qualquer outra coisa deste mundo que seja divina, como fazem o mito social e o mito cosmogônico. Pelo contrário, suas narrativas se movem em um mundo completamente demitizado. O sol e a lua são simplesmente as luminárias do mundo. O homem e os animais foram criados da terra do campo, isto é, são seres terrenos ou “terrosos”. Quando Deus sopra o ruach nas narinas do homem, não o diviniza, mas apenas o autoriza a ser um ser humano. 

No relato sobre o surgimento do mundo das nações (Gn 10 e 11), do qual Israel faz parte (Gn 12 a 50), tal mundo tem um fundamento histórico, e não mítico. E o fundamento histórico não autoriza a nenhum indivíduo, grupo de indivíduos ou nação, inclusive Israel, a proclamar sua descendência direta da divindade, ou possuir um poder transcendente, a fim de ocupar o centro do mundo das nações, como faziam as potencias do mundo antigo.

 

Demitização do poder divino

Em todas as religiões, o poder é um atributo essencial da divindade. Para a teologia da criação também o poder é, acima de tudo, o predicado próprio de Deus. Tudo que ela diz de Deus possui o caráter de um poder infinito. Deus é infinitamente poderoso (Gn 17:1; 35:11;43:14). Para ele não há nada impossível de realizar (Gn 18:14). Não obstante, do testemunho dessa teologia surge um Deus diferente dos deuses mitológicos, o que implica em um novo conceito do poder.

O mito social do Antigo Oriente Médio se caracteriza por atribuir à divindade o poder da coesão social e das forças da natureza, que apresentava de maneira inversa. Mas o Deus da teologia da criação é único, não existe ninguém igual a ele. Seu poder é impenetrável, permanece em profundo mistério, transcende a realidade natural e humana. Mesmo reconhecendo que Deus é o criador do mundo, seu poder não é confundido com as forças cósmicas. Mesmo mostrando que o poder humano é usado por Deus no cumprimento de seu desígnio na história, jamais lhe atribui um caráter divino.

Ao afirmar que o poder de Deus é exclusivo de Deus, isto é, ao não confundir o poder de Deus com o poder humano ou com as forças da natureza, a teologia da criação demitiza o poder divino. Desse modo, torna impossível a pretensão do ser humano de possuir um poder derivado de Deus quando governa ou administra.

 

Demitização do poder humano

A enérgica tarefa de purificação do pensamento mítico da teologia da criação atinge o sustentáculo do poder no mundo das nações, a saber, a divinização do poder humano. O Enuma elish, por exemplo, volta às origens a fim de estabelecer uma linha reta da criação do mundo com os babilônios. Logo, os apresenta como os únicos descendentes diretos da divindade criadora, o que lhes dá o direito de dominar no mundo das nações. Desse modo, o pensamento mítico justifica a hegemonia do reino de Babilônia e a política imperialista de seus governantes.   

Mas a teologia da criação retorna ao remoto começo de tudo com outra intenção — quer atingir a profundeza humana. Para tal, não vê o ser humano numa perspectiva racista ou nacionalista como faz o mito, mas imerso na realidade maior à qual pertence e que o define. Pois, desse modo, o homem pode ver com mais clareza sua condição humana, sua relação com Deus e com a criação como um todo.   

Sigamos os passos dados pela teologia da criação nesse sentido.

  1. Propõe de imediato que Deus é único, isto é, que ninguém pode ser como ele.
  2. Revela que a criação é uma realidade distinta de Deus, que existe fora de Deus, mas junto de Deus porque depende dele por completo. E assim, desde o ponto de vista da unicidade de Deus, as narrativas de Gn 1 e 2 tornam bem claro que a criação não é Deus. Embora tudo exista em virtude de Deus, ele permanece distinto da criação. Uma coisa é a criação, outra realidade é Deus. Não há confusão entre a criatura e o Criador.
  3. Como parte da criação, mesmo sendo considerado a mais importante, o homem também recebeu uma maneira de ser e uma liberdade que são próprias da criatura, isto é, como uma realidade que existe fora de Deus e é distinta de Deus. 
  4. Apresenta o homem como um ser totalmente terreno. Nas suas veias, não corre o sangue de um deus abatido como no mito babilônico, nem se originou das lágrimas do deus sol como se dizia no Egito. Na seguinte formulação, mostra que a divinização do homem pelo homem é incoerente com a realidade: o homem foi criado com elementos tomados da terra do campo; ele é nêfesh, isto é, um ser necessitado e efêmero; e, quando recebeu a ruach de Deus, foi autorizado a ser um ser humano, nada mais, nada menos.
  5. A conclusão é evidente: uma vez que Deus é único, o desejo do homem de ser como Deus resulta de haver-se desvirtuado a relação com Deus. É pecado, porque significa extraviar-se, errar o alvo, praticar uma ação sem valor por não ter resultado.

Enfim, a teologia da criação demitiza o poder ao afirmar que o poder de Deus é exclusivo de Deus, que as forças da natureza são apenas as forças da natureza, e que o poder do homem é meramente o poder humano.

 

O golpe final

O golpe final, destinado a derrubar por terra a velha cultura fundada na tradição dos dois mundos, foi dado por Jesus Cristo. O Novo Testamento testemunha o rompimento do Redentor com essa tradição que leva o homem a imitar a divindade, porque incute nele o desejo ilegítimo de ser como Deus.

O homem antigo distingue entre o mundo divino e o mundo humano, e vê o mundo divino sobreposto ao mundo humano, invadindo a existência humana. Por isso, classifica os seres e coisas em categorias superiores e inferiores, sagradas e profanas, puras e impuras. E é identificando-se com as coisas que considera superiores, sagradas e puras que esse homem julga integrar-se no mundo divino.

Mas Jesus não fala dessa maneira. Para ele todos os seres e coisas naturais deste mundo são criação de Deus, portanto não há de se distinguir entre pessoas, animais ou coisas superiores e inferiores, sagradas e profanas, puras e impuras. Por esse motivo, Jesus e seus discípulos não praticavam os ritos judaicos de purificação (Mr 7:1-23; Mt 15:1-20). Mais tarde, Pedro, que ainda não havia entendido essa atitude de Jesus, é ensinado, em uma visão, a não usar a versão judaica do padrão da dicotomia para discriminar a criação de Deus, principalmente às pessoas (At 1l:1-17). 

O Novo Testamento também testemunha que Jesus Cristo renunciou ao poder, e ensinou e viveu o amor como sendo a antítese do poder. O hino da igreja primitiva, transcrito por Paulo em Fp 2:6-11, convoca os cristãos a terem o mesmo modo de sentir que houve em Jesus Cristo. Esse hino, que lamentavelmente ficou fora de nossos hinários, esclarece como Jesus Cristo renunciou ao poder: Ele deixou de lado o poder que lhe era próprio da natureza divina para tornar-se ser humano; tornou-se um ser humano autêntico porque “não insistia em ser igual a Deus”; adotou a natureza de um servo humilde e foi obediente a Deus até a morte; por isso, agora é reconhecido como o Senhor.

Vejo nesse hino a seguinte mensagem: o homem não pode se fazer Deus, mas Deus pode se fazer homem para revelar em que consiste ser um ser humano autêntico. O fato de que Deus se fez ser humano em Jesus Cristo, e que este renunciou ao poder em favor do amor, constitui o golpe mortal aos mitos e às culturas que seduzem à auto-elevação. Esse feito extraordinário de Deus é uma revelação surpreendente: Jesus Cristo foi elevado às alturas por haver seguido o caminho oposto ao caminho traçado pela dicotomia, a saber, em vez de divinizar-se, fez questão de ser um ser humano autêntico. Deus poderia ter agido de modo mais forte para chamar o homem a algo novo?

Em seu novo mandamento do amor Jesus faz uma exigência total que sobrepuja tudo o que havia antes: “Amem uns aos outros assim como eu os amei”. E acrescenta: "Se tiverem amor uns pelos outros, todos saberão que vocês são meus seguidores" (Jo 13:34, 35 comparar com a última parte do verso 1). Para Jesus não é o poder que conta e sim o amor como ele o ensinou e viveu. Nesse sentido, podemos resumir a mensagem do Evangelho da seguinte maneira: os que estão distantes de Deus se dedicam a dominar uns aos outros, mas quem renuncia ao poder e enfrenta o mal demonstrando amor abre-se ao reino de Deus que veio na atividade terrena de Jesus.

Com a renúncia ao poder em favor do amor, Jesus abre o caminho para uma nova relação direta com Deus, para uma nova relação com o próximo e para uma nova relação social de seus seguidores entre si, nas quais se expressa uma nova maneira de ser homem.

A nova relação direta com Deus aparece na imagem de Deus como Pai, exclusiva de Jesus, e que suplanta a imagem antiga de Deus como “rei” ou “imperador”, sentado em seu trono e dando leis para todos. Em vez de uma relação de poder, a imagem do Pai celestial sugere uma relação de amor de Deus com homem: o homem deve confiar em Deus como uma criança confia em seu amoroso pai. E quem entra nessa nova relação orará de maneira nova, expressando também uma nova relação com o próximo (Mc11:24-26; Mt 6:5-15; 7:7-12). 

No dito de Mt 20:25-28, o Senhor Jesus afirma que entre seus seguidores valem outras regras do que no campo político. Exige que seus seguidores não se dediquem a dominar uns aos outros como fazem os pagãos. Em vez disso, estabelece uma nova relação social entre seus discípulos, baseada no conceito “servir” (a maneira cristã de demonstrar amor ao próximo, exemplificado em Lc 10:30-37 e Mt 25:34-40).

Louvado seja Deus, porque age na história para pôr as coisas em seu devido lugar.

 

Resultados

A demitização do mundo e do poder, implicada na teologia da criação, têm resultados. A proclamação de um Deus único, criador de tudo o que existe e soberano do homem, destrói o politeísmo e faz deixar de se considerar as coisas criadas como potências divinas. A eliminação de um mundo cheio de deuses e das ambigüidades que a presença deles provoca, prepara o caminho para o surgimento de novas culturas mais coerentes com a realidade e com a condição humana. Nisto, já começamos a perceber que o monoteísmo proclamado pela teologia da criação é muito mais rico do que podemos imaginar.

Mas é recém nas sociedades ocidentais modernas, fundamentadas em princípios judeu-cristãos, que a tradição dos dois mundos e o poder transcendente são completamente superados. A revolução burguesa cria condições para abolir a tradição dos dois mundos a fim de que comece a humanidade do homem. Removida a ambigüidade, há uma transformação da técnica, da filosofia e da ciência, as quais surgem numa dimensão totalmente nova. Num clima de esquecimento do modelo do passado, o homem moderno não mais se integra no mundo no sentido transcendental, teológico, da dicotomia. Ele constrói e faz a reforma toda visando transformar este mundo em sua casa.

A investida contra o poder transcendente começa na Revolução Francesa (final do século XVIII). Este movimento revolucionário, inspirado nos ideais democráticos do Iluminismo,  rompe, por um lado, com a tradição: o direito divino dos reis, a monarquia absoluta, a sociedade desigual e hierárquica, os valores e concepções predominantes até então; por outro lado, funda uma nova ordem que inaugura a chamada modernidade ocidental.

O Iluminismo forneceu também o lema da Revolução Francesa: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Os revolucionários pretendiam resolver velhos problemas conciliando a nova ordem política e social com esses valores universais, os quais foram descobertos nas Escrituras por pensadores iluministas. Segundo o Gênesis, a humanidade pode começar a curar suas doenças adotando tais valores.

A influência da teologia da criação é mais evidente na obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), um dos mais representativos expositores do Iluminismo. O pano de fundo que inspira suas formulações é a forma secularizada do esquema cristão de evolução histórica, cujas raízes estão no Gênesis. Este esquema concebe a existência de três momentos: o Éden, a queda e a salvação. Rousseau sabe que o regresso ao estado de natureza do tempo original é impossível. Pensa na possibilidade de redenção das desigualdades e dos maus sentimentos que proliferam no mundo, mediante a restauração da verdade das origens, do homem primordial. Acredita que a regeneração só acontece quando a humanidade reencontra e recupera a liberdade original perdida e se une com laços mais estreitos.

A Revolução Francesa é um dos fatos mais importantes da história do mundo. É o marco temporal que assinala o fim da Idade Moderna e o início da Idade Contemporânea. Tornou-se o divisor de águas entre duas formas completamente diferentes de pensar a criatura humana e a sociedade. As experiências históricas inéditas, protagonizadas pelos franceses nesse movimento revolucionário, são o ponto de referência e o modelo para práticas políticas atuais.

Fatos como os mencionados me fazem pensar na bondade, na fidelidade, na misericórdia e na enorme paciência de Deus com o homem, dando-lhe tempo e instruções para que construa seu ser de acordo com seu desígnio. Pela parte que me toca, sou muito grato a Deus.

 

A tarefa não está concluída

Mas a questão fundamental, implicada em Gn 3, ainda não foi resolvida, a saber, tudo que o homem de pecado faz é determinado pelo desejo de dominar, de possuir um poder autônomo que o faz sentir-se como um deus. A teologia da criação se refere à ambigüidade desse desejo: sempre que homem procura ser o senhor do mundo é cerceado nessa sua vontade de domínio, pois descobre que no mundo residem forças que ele não pode dominar e que sua dominação deturpa e destrói a criação. E também fala de como a vontade de dominar complica a existência: mesmo sentindo-se parte do mundo e predestinado a instalar-se nele, o homem não consegue que sua instalação seja algo natural, algo fundamentalmente harmônico.

Atualmente, essa problemática é muito mais grave, pois com a globalização o desejo de dominar foi cosmicamente ampliado. E esse desejo assim ampliado é o motor de todas as transformações feitas pelo homem moderno. Por isso, muitas dessas transformações deturpam e destroem a criação como nunca antes. Entre seus piores resultados estão o aumento constante dos milhões de pessoas que não conseguem instalar-se no mundo com dignidade e o surgimento de mitos modernos, como o mito da ciência (o método científico dever ser dominante, porque só a ciência é capaz de explicar tudo), o mito do Estado (atribui propriedades divinas ao poder soberano de Estado) e o mito da religião (supondo que as autoridades eclesiásticas são as pessoas mais próximas com Deus, lhes atribui um poder indiscutível).

E esses são outros tantos sinais indicadores de que a tarefa de demitização deve ser permanente, que as crenças do Gênesis devem perdurar. A propósito, na conclusão de sua obra O Mito do Estado, o professor Ernst Cassirer lembra que os "poderes do mito foram desafiados e vencidos por forças superiores". Porém adverte que o mito não morre. Quando vencido, aguarda uma oportunidade para se reerguer. E acrescenta: "Enquanto essas forças intelectuais, éticas e artísticas estão em pleno vigor, o mito está dominado e subjugado. Mas, apenas elas afrouxam, o caos volta outra vez. O pensamento mítico ergue-se de novo e infeta a vida cultural e social do homem".

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