Série: Descobrindo as Riquezas da Teologia da Criação no Gênesis
9. A criação de Israel — O povo da transformação

Por Edegard Silva Pereira

 

Este capítulo procura responder à seguinte pergunta: por que Deus escolheu um povo para si entre os demais povos da terra? Aqui abordamos uma questão de interesse e importância permanentes, que muita gente gostaria de entender: a razão da existência e o significado do povo de Deus.

A teologia da criação apresenta os motivos originais de Deus para ter um povo peculiar no mundo. Mas tais motivos só podem ser claramente compreendidos quando se entende a eleição e constituição de Israel à luz dos onze primeiros capítulos do Gênesis. Na ordem dada ao material narrativo, esses capítulos são a história prévia que dá sentido à história de Israel como povo de Deus. Assim sendo, antes de responder à pergunta formulada inicialmente, convém fazer uma síntese significativa da história prévia.

 

A história prévia

Os capítulos 1 e 2 colocam em primeiro lugar as duas verdades mais fundamentais das Escrituras —uma sobre Deus e outra sobre o ser humano—, as quais são o ponto de partida e de apoio de tudo o que vem depois. A saber: 1) o Deus criador é o único e legítimo soberano do homem; 2) o homem foi criado para existir como ser humano autêntico, junto a Deus.

O capítulo 3 narra o começo do pecado no mundo, e o apresenta como sendo a negação dessas duas verdades fundamentais. O desejo de “ser como Deus” (verso 5) significa que o homem não consente com a soberania divina e se recusa a existir como ser humano autêntico. Mediante a auto-elevação, transforma-se em um deus falso. Os capítulos 4 a 11 mostram como o pecado se generalizou no mundo e atingiu os aspectos totalizadores da vida. Babilônia institucionaliza a auto-elevação, isto é, a divinização do homem pelo homem nas estruturas religioso-políticas do poder nacional. Foi assim que o pecado encarnou no mundo das nações. 

Quanto à soberania de Deus, os capítulos repletos e compactos de Gn 1-11 mostram o seguinte: 1) desde os tempos primordiais, a questão sobre a soberania divina gerou um conflito entre Deus e a humanidade; 2) dividiu a humanidade em dois grupos antagônicos: os que atentam contra a soberania divina e os que são fieis aos desígnios originais de Deus; e 3) Deus exerce a sua soberania na história de modo polêmico. Isto é claro nas narrativas da queda de Adão e Eva, do assassinato de Abel por Caim, do dilúvio e da confusão das línguas em Babel, entre outros. 

 

As relações que estabelece

A teologia da criação estabelece as seguintes relações entre a história prévia e a origem da nação israelita: 1) o Deus criador é também o Deus redentor; 2) o mesmo Deus criador do mundo é o Deus criador de Israel; e 3) face ao surgimento do mundo das nações, Israel é escolhido para trazer as nações de volta a Deus. Convém notar que a história das origens, da criação, continua após a história prévia. A partir de Gn 12, ela se refere às origens, à criação do povo de Deus. E mostra que Deus age na história para pôr as coisas em seu devido lugar.

Dessas relações surgem a razão da existência do povo de Deus e o significado de sua missão no mundo. Eis um resumo do que as narrativas sobre a origem da Israel dizem nesse sentido: 

  • Deus escolhe um povo entre todos porque tem uma questão que ainda não foi resolvida com as nações.
      
  • A partir do surgimento do mundo das nações, a teologia da criação passa a mostrar uma nova maneira de Deus tratar com a humanidade. Em Gn 12 começa o desenrolar da história da salvação. Ela revela que Deus tem um plano para remir a humanidade, do qual Israel é testemunha no mundo das nações.
      
  • A história prévia desmascara a deturpação da criação. E coloca isso como tarefa típica e fundamental do povo de Deus, porque entende que redenção é a superação da deturpação da criação, a restauração da criaturalidade. O próprio Gênesis cumpre essa tarefa de maneira admirável, formulando uma teologia da criação com tal riqueza e originalidade, que agrada crianças e surpreende até os eruditos.  

Consideremos, com mais detalhes, os aspectos principais da missão do povo de Deus.

 

Uma missão universal

A criação de Israel acontece por um processo de escolha: primeiro Deus escolhe Abrão (depois chamado Abraão); da descendência de Abraão, escolhe Isaque; e da descendência de Isaque, escolhe a Jacó e seus descendentes (Gn 12-50).  A missão universal de Israel aparece já no ato divino que deu origem a esse povo: a eleição do patriarca Abrão e sua descendência. Gn 12:1-3 diz:

Certo dia o Deus Eterno disse a Abrão: — Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa do seu pai e vá para uma terra que eu lhe mostrarei. Os seus descendentes vão formar uma grande nação. Eu o abençoarei, o seu nome será famoso, e você será uma bênção para os outros. Abençoarei os que o abençoarem e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem. E por meio de você todos os povos do mundo serão abençoados.

Então, o povo de Deus não existe em função de si mesmo, mas unicamente em função da controvérsia entre Deus e o mundo das nações. Que Israel foi eleito para ser a testemunha de Deus no mundo das nações, pode-se perceber já na “teologia da história” esboçada em Gn 1-11. Ali, a realização polêmica da soberania divina na história está diretamente implicada com a divisão da humanidade, desde o início, em dois partidos básicos conflitantes: um submisso e outro rebelde a Deus (Gn 3:15; 4:3-8). Israel surge nessa controvérsia como povo identificado com a linha de fidelidade a Deus, mantida pelos patriarcas.

Segundo Gn 12:1-3, Abraão é o patriarca, detentor da linha de fidelidade a Deus na forma de clã, escolhido por Deus para que sua descendência mantivesse a mesma linha na forma de nação, para testemunho às demais nações do mundo. O universalismo da missão de Israel como povo de Deus é expresso na seguinte declaração: "E por meio de você todos os povos do mundo serão abençoados".

Quando o pecado atingiu as nações, encarnou nos aspectos totalizadores da existência humana. A eleição de Israel expressa o ideal divino de que a fidelidade atingisse também essa dimensão mais ampla da vida. Constituindo um povo para si, Deus manteve paridade de nível de ação com o pecado na polêmica em torno da soberania divina. Israel foi escolhido para dar um testemunho de nação para nações, ou seja, seu testemunho às nações é essencialmente o testemunho de sua forma de vida embasada no consentimento à soberania divina e não na dominação do homem pelo homem, a qual leva o homem a querer ser como um deus.

 

Eleição para o serviço

Que o povo de Deus não existe em função de si mesmo está claro no fato de haver sido eleito para o serviço. Como em tantos lugares o reconhece o Antigo Testamento, Israel é o “servo de Deus”; e este serviço é prestado no âmbito das nações. Th. C. Vriezen assim se expressa sobre essa eleição para o serviço: “A eleição separa Israel das nações, para que ele possa servir a Deus e revelar, de modo especial, Sua glória e soberania sobre a Terra e, por fim, trazer todo o mundo a Deus. (...) A eleição não tem qualquer propósito em si, a não ser o Reino de Deus”.

A eleição do povo de Deus não é favoritismo ou privilégio. É responsabilidade. A sociedade israelita deveria estar calçada no serviço às nações. Sempre que Israel viu sua eleição como favoritismo, ou sentiu-se privilegiado, separou-se de seu Deus e lançou as bases de suas desgraças. A função de Israel no meio dos povos é sacerdotal, ou seja, um serviço de mediação no litígio entre Deus e as nações sobre a soberania. Quando Israel procurou viver para criar sua própria glória nacional, e voltou-se para si mesmo, recusou a eleição para o serviço e fracassou em sua missão entre as nações do mundo.

 

O povo da transformação

No Gênesis, Israel surge como o povo da transformação da forma de vida. E nesta transformação está a essência de seu serviço às nações. Como conseguiria transformar a forma de vida dos povos? Usando a formidável bagagem de idéias, conceitos, valores fundamentais e desígnios originais de Deus apresentados na história prévia, os quais, em síntese, revelam o que significa existir como ser humano autêntico, em cada momento dado da vida neste mundo.

Além disso, toda uma série de experiências vitais e históricas, vividas nas origens da nação israelita, transferiram-se para seu espírito com tal intensidade, que ficaram inseridas em seu íntimo e passaram a fazer parte de sua personalidade. Nos relatos dessas experiências, Deus é o protagonista. É com elas que Deus preparara seu povo para ser sua testemunha às nações.

A mais importante dessas experiências é a migração, pois ela expressa melhor a transformação da forma de vida. Já na eleição de Abraão, a migração é um acontecimento decisivo. O patriarca é chamado por Deus para migrar da situação na qual se encontrava para outra nova, que Deus iria preparar para fazer de sua descendência uma grande nação (Gn 12:1). E segundo o livro do Êxodo (significa “saída” ou “migração”), os descendentes de Abraão formaram uma nação só depois de aceitar o chamamento de Deus para sair do Egito e radicar-se em Canaã. Na migração para o novo preparado por Deus encontramos a razão de ser do povo de Deus.

No êxodo do Egito, Deus revela duas notáveis características. A primeira, ele é o Deus libertador. A descendência de Jacó viveu longos anos no Egito. Ali os hebreus conheceram todos os horrores da escravidão. No difícil processo de libertação, Deus enfrenta a mentalidade de senhor opressor do faraó e a de servo que tinha a multidão de escravos hebreus. A experiência de opressão e liberdade é fundamental no testemunho do povo de Deus às nações. Ela deixa claro o contraste que há entre os dominadores humanos e o Deus libertador.

A segunda característica é esta: durante o êxodo, Deus se revela como o Deus migrante. Ele arma sua tenda junto com seu povo e o acompanha em suas constantes viagens, guiando-o por um caminho que indica progresso, um constante deixar para trás a situação anterior. Leva seu povo a um futuro, a algo totalmente novo, que é o alvo dos acontecimentos do presente. Revelou-se, portanto, como um Deus dinâmico e inovador, que exige o abandono da vida costumeira e a abertura para uma nova forma de viver.

A chegada do “Deus migrante” constituiu uma revolução no mundo antigo. Os deuses mitológicos eram estáticos e conservadores. Ligados a um lugar, permaneciam num santuário, sentados em seus tronos. As pessoas tinham que ir ao lugar onde os deuses moravam para “receber” sua bênção, proteção e conselhos. E, naturalmente, eles não podiam oferecer nenhuma mudança, nenhuma situação realmente nova. Limitavam-se a “agir” dentro de uma situação previamente existente. Pois os mitos cosmogônicos ensinam que a situação existente foi estabelecida de uma vez para sempre, no princípio, pelos deuses. Por isso, segundo essa visão de mundo, a existência humana transcorre numa interminável repetição cíclica da mesma situação.

Tais mitos expressam, ainda, o dualismo da luta permanente entre a ordem e o caos. E “dão” a vitória ora para a ordem, ora para o caos, pois é impossível a vitória final de qualquer uma dessas forças, por causa de seu equilíbrio constante. Para os povos do mundo antigo, não adiantava reagir aos males, porque estão fora do controle humano. Essa é a razão da passividade fatalista desses povos.

Mas o Deus dos hebreus age de modo diferente. Não aceita uma postura conformista, fatalista ou conservadora. Pelo contrário, incentiva seu povo a não aceitar a situação existente como algo normal, natural, inexorável, e a ter uma visão crítica da condição à qual o homem está submetido.       

Na Bíblia, a transformação da forma de vida é vista como migração para uma situação nova e melhor que Deus está preparando, por amor ao ser humano. E a missão do povo de Deus consiste em convocar os demais povos para acompanhá-lo nessa transformação.

O Novo Testamento segue essa linha, mas se refere a uma transformação global. Rompe com as barreiras étnica, nacional e geográfica de Israel a fim de incluir toda a humanidade, o mundo por completo. Interpreta a migração de Abraão e o êxodo de Israel como figuras de uma futura transformação total da condição humana e do mundo. Haverá novos céus, nova terra e uma nova humanidade (Ap 21 e 22). Apresenta os cristãos como vivendo uma situação de êxodo desta realidade para outra totalmente nova, a qual é o cumprimento final e completo da promessa divina de salvação. No evangelho de São Mateus, por exemplo, Jesus Cristo é apresentado como o novo Moisés, o libertador que proclama a nova aliança e conduz o novo povo de Deus à nova realidade preparada por Deus. E para o apóstolo Paulo, os seguidores de Jesus Cristo são a descendência espiritual de Abraão, na qual Deus começa a cumprir definitivamente a promessa feita a esse patriarca (Rm 4:16, 17; Gl 3:29).

 

As falhas de Israel

Em boa parte de sua existência, Israel falhou em seu testemunho de nação para as nações. A meu ver, sua grande falha consiste em não ter aperfeiçoado a confederação igualitária de tribos, do estágio pré-monárquico, constituindo uma forma típica de vida que fosse uma luz para as nações. Em vez de fazer isso, quis ser igual às nações do mundo e adotou a monarquia. Então entrou no antigo jogo do poder, no qual foi sempre um perdedor. Sua vida política e social foi controlada, a maior parte do tempo, por monarquias despóticas, as quais, em certos momentos, trocaram o Deus único por deuses pagãos. A luta pelo poder dividiu a nação em dois reinos conflitantes, os quais se tornaram joguetes das potências e, finalmente, desapareceram no exílio assírio-babilônico.

Em Canaã, que deveria ser a terra da liberdade, os hebreus acabaram por organizar a sociedade com base na relação senhor/servo, própria do mundo das nações. Havia muitos escravos servindo às classes mais altas. Reis déspotas, aliados a sacerdotes gananciosos, oprimiam e exploravam o povo com toda sorte de injustiça. Até matavam os porta-vozes de Deus que queriam reconduzir a nação israelita à norma divina. E o que é pior, os poderosos faziam todas essas maldades em nome de Deus!

Com exceção do estágio pré-monárquico, o mais autêntico, porque era uma confederação igualitária de tribos, Israel falhou em constituir uma sociedade exemplar. Por não ter feito isso, os pensadores do político preferem referir-se à pólis grega, cuja forma de governo não é caracterizada pela dominação, mas pelo fato, segundo Hanna Arendt (Entre o Passado e o Futuro), de “basear-se no princípio da igualdade, não conhecendo diferenciação entre governantes e governados”. A transformação da forma de vida até o estágio atual das nações ocidentais ocorreu mais por influência dos gregos que de Israel. 

 

As falhas do cristianismo

Por tudo o que tenho observado e vivido, julgo que o cristianismo também tem falhado em seu testemunho comunitário às nações. Destaco quatro causas principais:

1)  A primeira é apontada por  Roger Mehl (Tratado de Sociologia do Protestantismo): a fim de alcançar seus objetivos, as denominações protestantes copiaram as formas de governo e de chefia mais admiradas no âmbito civil. Antes disso a Igreja Católica já havia copiado a estrutura do Império Romano. Caracterizadas por centralização, institucionalização e burocratização, as estruturas das denominações cristãs se assemelham às do Estado e às das grandes corporações mercantilistas. O que essas estruturas religiosas fazem é, de certo modo, legitimar as estruturas seculares, em vez de desafiá-las para que se transformem em algo melhor.
  

2)  Quanto ao poder religioso, ele é regido pelo princípio da indiscutibilidade das decisões das autoridades eclesiásticas. A queixa mais comum de sacerdotes católicos e pastores evangélicos é sobre o autoritarismo que impera nas estruturas eclesiásticas. É difícil aceitar a idéia de que Jesus Cristo tivesse a intenção de instituir, entre seus seguidores, uma forma de poder religioso que, em vez de libertar, se soma a todas as outras relações de poder existentes na sociedade, aumentando o fardo da dominação sobre o ser humano.
   

3)  A teologia tradicional, marcada pelo idealismo e limitada pela mediação filosófica, se mostra incapaz de fazer surgir, no espaço da história, uma forma de vida coletiva mais coerente com o desígnio de Deus. E assim é porque se mostra incapaz de perceber a questão social e política em sua expressão real, concreta, empírica e histórica. O que essa teologia faz é tratar os problemas sociais e políticos vinculando-os a questões éticas. E porque a ética é de natureza abstrata, ela conduz a reflexão teológica ao moralismo, cujos princípios abstratos conseguem apenas ordenar uma prática moral ajustada à consciência individual, às intenções do cristão particular.
 

4)  Tanto se tem enfatizado os aspectos individuais da fé de maneira abstrata, a ponto de não mais se entender o que significa o “Ide às nações” (Mt 28:18) em toda sua extensão e profundidade. O mais comum é encontrar cristãos alienados do âmbito social e político, porque acreditam tratar-se de um espaço profano, que está fora de seu campo de ação. Eles ignoram e até repudiam os aspectos políticos da fé. Precisam entender que Deus usou o espaço social e político de Israel para revelar-se na história, para preparar a vinda de seu reino e o evento da salvação, tal como a fé judeu-cristã o percebeu e como o testemunham as Escrituras. E precisam perceber que o pecado não age só no indivíduo, que prefere agir no âmbito social e político, o lugar possível e real onde pode encarnar nas formas de vida mais abrangentes.

Por isso tudo, é fácil constatar que falta ao cristianismo moderno uma mensagem e uma forma de vida comunitária que motivem os políticos e os agentes sociais a empenhar-se numa transformação real, duradoura e profunda das sociedades seculares.

 

Considerações finais

Nosso estudo deixou claro que Israel foi escolhido a fim de ser uma testemunha de Deus no mundo das nações. Sua missão consiste em trazer as nações de volta a Deus. Seu testemunho tem como pano de fundo a questão da soberania de Deus, e deveria acontecer de duas maneiras.

A primeira, proclamando às nações as idéias, conceitos e valores expressados na  história prévia (Gn 1-11), alguns dos quais os leitores podem conferir lendo os capítulos anteriores deste trabalho. A segunda, dando um testemunho às nações do que significa a transformação desejada por Deus, através de sua vida social e política organizada de acordo com as idéias, conceitos e valores que proclama.

Constatamos que, em boa parte de sua história, Israel falhou em dar este testemunho. A Igreja, de modo geral, também tem falhado em dar esse mesmo testemunho às nações, as quais foi enviada como mensageira de Cristo (Mt 28:18-20). Pois a teologia tradicional, que se mostra incapaz de perceber as estruturas supra-individuais (sociais e políticas) como decisivas na  história, se limita a formular princípios éticos endereçados aos indivíduos. Portanto, a seguinte pergunta ainda espera por uma resposta: Qual é, então, a bênção que o testemunho da forma de vida comunitária da descendência espiritual de Abraão tem para oferecer hoje às nações modernas?...

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